SANTA DOS BREJOS: alguma lembrança (5)
Velho Porto Novo da paz
Por Aloísio Brandão,
Tomamos a estrada de barro
poeirenta que nos levaria de Santana dos Brejos (SB) a Porto Novo, às 11 horas
de um dia claro de julho de 2008. Porto Novo é um povoado do Município de SB e
fica a pouco mais de 40 quilômetros a Norte, onde eu não botava os pés, havia
35 anos. O pó de terra fino e grudento que o mês de julho põe nas estradas
barreadas do sertão e os solavancos intermináveis não tiraram a alegria e a
emoção da viagem, alimentadas pelas boas histórias que Marcelinho de Lia de
Pedrito, o motorista do carro que me transportava, contava.
A solidão transformadora
daquele pedaço meio esquecido da Bahia foi um prefácio do que eu encontraria
pela frente: um pacato povoado perdido no tempo. Uma hora de viagem, e o
motorista esticou o beiço e, como quem traz a mais aguardada boa-nova, anuncia:
“Estamos chegando. Porto Novo fica logo do outro lado desse morro”. Meu coração
disparou em mim uma agitação de menino.
Foi o tempo para eu
arrumar os cabelos desgrenhados e encharcados da poeira que entrava pela janela
que não fechava (a do lado do passageiro), para calçar as velhas botas Bull
Terrier e ajeitar o bermudão caqui e folgado. E, de repente, o lugarejo começa
a mostrar o seu encantamento. É Porto Novo que vem entrando em mim, sem me dar
tempo para me preparar para o fato.
Já às primeiras casas,
dava para ver o mistério que o tempo obrara naquele lugar: o seu total desapego
às horas. O carro avançou pela primeira fileira de casas, e eu pedi ao
motorista para que fosse o mais lento possível. Precisava, afinal, amoldar-me à
fôrma do não-tempo que tragara aquele lugarejo.
Além do mais, sorver Porto
Novo de um gole poderia ser perigoso para a emoção. Era preciso tempo para
decodificar, aos poucos, aquela ausência de tempo. Porto Novo desidratou-se de
tudo o que é desimportante para se tornar a essência em povoado. Portanto, era
preciso calma para a minha cabeça desapegar-se da aceleração em que vive metida
neste corre-corre de jornalista e, aos poucos, absorver o povoado. Não seria
fácil. Ali, o tempo desintegrou-se.
Marcelinho de Lia de
Pedrito estacionou o carro, ao fim da rua principal das poucas existentes, onde
fica o restaurante de Augusto. Em verdade, um rancho de madeira com meia dúzia
de mesas e uma varanda arejada, de onde se vê o caudaloso e veloz Rio Corrente
a coisa de 15 metros dali. Rio de negos d’água (eu falo deles num conto com que
fui um dos vencedores do Prêmio Nacional de Literatura Machado de Assis, em
2010); povoado de gente boa e festeira.
Aproveitei para
encomendar, logo, o almoço a Augusto, pois já passava do meio-dia. Uma moqueca
de peixe, acompanhada de pirão, arroz e salada, foi a sugestão do dublê de
cozinheiro-garçom e proprietário do restaurante. Moqueca, no sertão baiano,
diga-se de passagem, não conhece camarão (descrever, aqui, o almoço atende, em
parte, a um pedido de um amigo, para que eu falasse sobre a gastronomia
sertaneja).
Enquanto Augusto,
descalço, nu da cintura para cima e metido num calção preto descorado,
emprestava o seu capricho à preparação da comida, fui dar uma volta a pé,
sozinho, pelo povoado. Quanta beleza por todo lugar. Beleza simples, rude e, a
um só tempo, delicada. Dessas que não acenam aos olhos com estardalhaços e
pompas. As casas, pintadas em cores vivas - e várias delas bem conservadas -, pareciam
desgrudar-se de um quadro de Volpi para se abrigar naquelas ruazinhas.
Aproveitei para visitar
amigos dos meus pais. Nazinha, na cozinha, preparava o arroz para o almoço, e
ficou nervosa, quando me viu entrando pela porta, sem me anunciar. Nazinha é o
coração em pessoa. Não sabia se ficava ao fogão, ou se me oferecia uma cadeira,
uma água, um café, um doce. Acabou trazendo-me uma pinha bem madura e doce,
colhida em seu quintal. Dali, ela me levou à casa de Chico de Menininha, um
comovente jardim de orquídeas nativas à beira do Corrente.
Tomei, depois, uma ruazinha
margeando o rio, de onde subi para a rua principal e saí diante da igrejinha de
São Sebastião, o padroeiro do lugar. Praticamente, ninguém pelas ruas. Apenas
um senhor sentado em um banco tosco de madeira e encostado ao tronco de um
oitizeiro quebrava delicadamente o silêncio com o seu rádio de pilha posto
sobre as pernas. Cumprimentou-me com tanta doçura. Mais abaixo, uma velha de 90
anos enfiava, com destreza e parcimônia de movimentos, a linha na agulha. Parei
para ver a cena, e me perguntei se aquela linha não seria adestrada para entrar
sozinha na agulha, pois que a senhora não usava óculos, não vacilava.
As chaminés prenhas de
picumãs das casas exalavam os cheiros característicos das comidas ribeirinhas.
Ouvia-se o silêncio entrecortado por talheres mais afoitos e ruidosos. Já
passava de uma da tarde. E a fome apertou.
No restaurante de Augusto,
encontrei Marcelinho de Lia de Pedrito me esperando com uma cerveja. O cheiro
do tucunaré ia longe. Pedi um copo e ofereci cerveja a um meio-mulato de sol,
atarracado, espadaúdo, musculoso e baixo, de uns 45 anos, chamado Tácio, que se
aproximara de mim.
Marcelinho cuidou de
espalhar pelo povoado a notícia de que sou jornalista e compositor, que toco
violão, que canto. Tácio saiu de fininho, com a sabedoria dos velhos
ribeirinhos, e voltou, trazendo um violão e vários amigos seus. Chegaram para
cantar e tocar comigo.
O peixe servido por
Augusto foi um acontecimento à parte. Aquele cabra era um mágico da
simplicidade na cozinha. O tucunaré era tucunaré e não uma invencionice
gastronômica dessas que acabam virando um monstrengo sem gosto, nem
personalidade. O peixe estava preparado com a brandura conhecida dos
entendidos: pouco tempero, pouco sal, o que fazia sobressair o sabor do tucunaré
em postas sem ranço, sem aquele gosto barrento de alguns peixes de rio.
O pirão do peixe, uma
tentação! Obviamente, que Augusto se prevaleceu da qualidade da farinha de
mandioca bem torrada e fina, parida nos fornos artesanais de Santana dos Brejos,
para extrair dela o melhor sabor e a textura exata para o pirão. O arroz
ligeiramente molhado fez-me lembrar do arroz encantado que meus amigos mineiros
Marcos Chaves e Liza Andrade fazem, em Brasília, para os amigos. O arroz de
Augusto deixava sobressair pequenos pedaços de alho tostados. A salada era
simples: alface, tomate e cebola em rodelas. E nada mais.
Àquela hora, nenhum carro,
nenhuma moto, ninguém vendendo bugigangas eletrônicas dessas que apitam e
piscam luzes multicoloridas, nenhuma tristeza, nenhuma pressa naquele mundo que
os mapas turísticos e socioeconômicos não alcançam.
O que veio, após a última
garfada, foi boa música trazida pelo violão e pelos cantares. Presentearam-me
com “A volta do boêmio” (Adelino Moreira), imortalizada na voz de Nelson
Golçalves, e outras pérolas da música brasileira. Cantei para eles composições
minhas.
Já à hora de embarcar de
volta, Tácio perguntou-me ao pé do ouvido: “Você vai escrever alguma coisa
sobre Porto Novo? Pergunto, porque eu fico com medo de isto aqui ser descoberto
e encher de gente de fora, acabando com a nossa paz”. Falou-me, como se
desejasse que ninguém lesse este texto.
ADOREI e me emocionei muito..... Me senti como se estivesse lá.
ResponderExcluirNubia de Celeste Reis e Ozano Cruz