quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Por Aloísio Brandão,


SANTA DOS BREJOS: alguma lembrança (5)

Velho Porto Novo da paz

Por Aloísio Brandão,

Tomamos a estrada de barro poeirenta que nos levaria de Santana dos Brejos (SB) a Porto Novo, às 11 horas de um dia claro de julho de 2008. Porto Novo é um povoado do Município de SB e fica a pouco mais de 40 quilômetros a Norte, onde eu não botava os pés, havia 35 anos. O pó de terra fino e grudento que o mês de julho põe nas estradas barreadas do sertão e os solavancos intermináveis não tiraram a alegria e a emoção da viagem, alimentadas pelas boas histórias que Marcelinho de Lia de Pedrito, o motorista do carro que me transportava, contava.

A solidão transformadora daquele pedaço meio esquecido da Bahia foi um prefácio do que eu encontraria pela frente: um pacato povoado perdido no tempo. Uma hora de viagem, e o motorista esticou o beiço e, como quem traz a mais aguardada boa-nova, anuncia: “Estamos chegando. Porto Novo fica logo do outro lado desse morro”. Meu coração disparou em mim uma agitação de menino.

Foi o tempo para eu arrumar os cabelos desgrenhados e encharcados da poeira que entrava pela janela que não fechava (a do lado do passageiro), para calçar as velhas botas Bull Terrier e ajeitar o bermudão caqui e folgado. E, de repente, o lugarejo começa a mostrar o seu encantamento. É Porto Novo que vem entrando em mim, sem me dar tempo para me preparar para o fato.

Já às primeiras casas, dava para ver o mistério que o tempo obrara naquele lugar: o seu total desapego às horas. O carro avançou pela primeira fileira de casas, e eu pedi ao motorista para que fosse o mais lento possível. Precisava, afinal, amoldar-me à fôrma do não-tempo que tragara aquele lugarejo.

Além do mais, sorver Porto Novo de um gole poderia ser perigoso para a emoção. Era preciso tempo para decodificar, aos poucos, aquela ausência de tempo. Porto Novo desidratou-se de tudo o que é desimportante para se tornar a essência em povoado. Portanto, era preciso calma para a minha cabeça desapegar-se da aceleração em que vive metida neste corre-corre de jornalista e, aos poucos, absorver o povoado. Não seria fácil. Ali, o tempo desintegrou-se.

Marcelinho de Lia de Pedrito estacionou o carro, ao fim da rua principal das poucas existentes, onde fica o restaurante de Augusto. Em verdade, um rancho de madeira com meia dúzia de mesas e uma varanda arejada, de onde se vê o caudaloso e veloz Rio Corrente a coisa de 15 metros dali. Rio de negos d’água (eu falo deles num conto com que fui um dos vencedores do Prêmio Nacional de Literatura Machado de Assis, em 2010); povoado de gente boa e festeira.

Aproveitei para encomendar, logo, o almoço a Augusto, pois já passava do meio-dia. Uma moqueca de peixe, acompanhada de pirão, arroz e salada, foi a sugestão do dublê de cozinheiro-garçom e proprietário do restaurante. Moqueca, no sertão baiano, diga-se de passagem, não conhece camarão (descrever, aqui, o almoço atende, em parte, a um pedido de um amigo, para que eu falasse sobre a gastronomia sertaneja).

Enquanto Augusto, descalço, nu da cintura para cima e metido num calção preto descorado, emprestava o seu capricho à preparação da comida, fui dar uma volta a pé, sozinho, pelo povoado. Quanta beleza por todo lugar. Beleza simples, rude e, a um só tempo, delicada. Dessas que não acenam aos olhos com estardalhaços e pompas. As casas, pintadas em cores vivas - e várias delas bem conservadas -, pareciam desgrudar-se de um quadro de Volpi para se abrigar naquelas ruazinhas.

Aproveitei para visitar amigos dos meus pais. Nazinha, na cozinha, preparava o arroz para o almoço, e ficou nervosa, quando me viu entrando pela porta, sem me anunciar. Nazinha é o coração em pessoa. Não sabia se ficava ao fogão, ou se me oferecia uma cadeira, uma água, um café, um doce. Acabou trazendo-me uma pinha bem madura e doce, colhida em seu quintal. Dali, ela me levou à casa de Chico de Menininha, um comovente jardim de orquídeas nativas à beira do Corrente.

Tomei, depois, uma ruazinha margeando o rio, de onde subi para a rua principal e saí diante da igrejinha de São Sebastião, o padroeiro do lugar. Praticamente, ninguém pelas ruas. Apenas um senhor sentado em um banco tosco de madeira e encostado ao tronco de um oitizeiro quebrava delicadamente o silêncio com o seu rádio de pilha posto sobre as pernas. Cumprimentou-me com tanta doçura. Mais abaixo, uma velha de 90 anos enfiava, com destreza e parcimônia de movimentos, a linha na agulha. Parei para ver a cena, e me perguntei se aquela linha não seria adestrada para entrar sozinha na agulha, pois que a senhora não usava óculos, não vacilava.

As chaminés prenhas de picumãs das casas exalavam os cheiros característicos das comidas ribeirinhas. Ouvia-se o silêncio entrecortado por talheres mais afoitos e ruidosos. Já passava de uma da tarde. E a fome apertou.

No restaurante de Augusto, encontrei Marcelinho de Lia de Pedrito me esperando com uma cerveja. O cheiro do tucunaré ia longe. Pedi um copo e ofereci cerveja a um meio-mulato de sol, atarracado, espadaúdo, musculoso e baixo, de uns 45 anos, chamado Tácio, que se aproximara de mim.

Marcelinho cuidou de espalhar pelo povoado a notícia de que sou jornalista e compositor, que toco violão, que canto. Tácio saiu de fininho, com a sabedoria dos velhos ribeirinhos, e voltou, trazendo um violão e vários amigos seus. Chegaram para cantar e tocar comigo.

O peixe servido por Augusto foi um acontecimento à parte. Aquele cabra era um mágico da simplicidade na cozinha. O tucunaré era tucunaré e não uma invencionice gastronômica dessas que acabam virando um monstrengo sem gosto, nem personalidade. O peixe estava preparado com a brandura conhecida dos entendidos: pouco tempero, pouco sal, o que fazia sobressair o sabor do tucunaré em postas sem ranço, sem aquele gosto barrento de alguns peixes de rio.

O pirão do peixe, uma tentação! Obviamente, que Augusto se prevaleceu da qualidade da farinha de mandioca bem torrada e fina, parida nos fornos artesanais de Santana dos Brejos, para extrair dela o melhor sabor e a textura exata para o pirão. O arroz ligeiramente molhado fez-me lembrar do arroz encantado que meus amigos mineiros Marcos Chaves e Liza Andrade fazem, em Brasília, para os amigos. O arroz de Augusto deixava sobressair pequenos pedaços de alho tostados. A salada era simples: alface, tomate e cebola em rodelas. E nada mais.

Àquela hora, nenhum carro, nenhuma moto, ninguém vendendo bugigangas eletrônicas dessas que apitam e piscam luzes multicoloridas, nenhuma tristeza, nenhuma pressa naquele mundo que os mapas turísticos e socioeconômicos não alcançam.

O que veio, após a última garfada, foi boa música trazida pelo violão e pelos cantares. Presentearam-me com “A volta do boêmio” (Adelino Moreira), imortalizada na voz de Nelson Golçalves, e outras pérolas da música brasileira. Cantei para eles composições minhas.

Já à hora de embarcar de volta, Tácio perguntou-me ao pé do ouvido: “Você vai escrever alguma coisa sobre Porto Novo? Pergunto, porque eu fico com medo de isto aqui ser descoberto e encher de gente de fora, acabando com a nossa paz”. Falou-me, como se desejasse que ninguém lesse este texto.

Um comentário:

  1. ADOREI e me emocionei muito..... Me senti como se estivesse lá.
    Nubia de Celeste Reis e Ozano Cruz

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