Este poema foi publicado em 1938. Em dia 16 de julho daquele ano nasceu meu tio Sinval.
No mesmo dia, um ano antes, nasceu papai.
Chishna também aniversaria hoje.
Mas este poema, que o Vanine me mostrou há uns vinte anos, parece mesmo é com o velho Sinval.
Saudade docê companheiro.
" Trecho do Noturno "
É tarde já . . . Cheguei cansado e exausto, trago
dentro da alma um complexo estranhamente vago,
uma angústia que eu mesmo não sei definir...
Acabei de dançar, de beber, de sorrir...
Tenho os olhos ardendo, e eu sei, porque ainda há pouco
olhando-me no espelho tinha o olhar de um louco
e a palidez de um doente... E pensei para mim
que essa vida da noite é exatamente assim:
vale pela ilusão de que estamos contentes,
ninguém sabe o que eu sinto... e quem sabe o que sentes?
A alegria que espuma, é a espuma da bebida
que dá ao sangue a impulsão de um excesso de vida;
os gestos de que a alma inflamada é capaz
sintonizam com os ritmos doidos do jazz,
vamos buscar a vida, o prazer, e enojados
saímos com a impressão de que fomos logrados!
Ora, o mundo afinal, não sendo mau nem bom
lembra mesmo uma casa alegre de bas-fond;
- na fachada a féerie dos letreiros piscando,
por dentro, uma algazarra falsa, transbordando
sobre almas enfastiadas de tédio e de amor!
Por trás destes letreiros cheios de esplendor,
rebrilhantes, na névoa das horas já mortas,
quantos vultos sem rumo entre as frestas das portas
quanta vida afinal desarvorada e ao léu!
Dentro de todo o ruído e de todo o escarcéu
sem se olhar para os lábios, - nos olhos, no fundo,
há um drama que envergonha as platéias do mundo!
..........
Perdoa-me se escrevo estas cousas, perdoa,
nem sei bem o que escrevo, estou traçando à toa
estas linhas que lês... e esta filosofia
barata, eu a pensei, já à luz baça do dia
que anda clareando o céu e desenhando as ruas...
Cheguei; sentei-me aqui... e uma das cartas tuas
encontrei sobre a mesa esquecida: reli-a ...
Que amargura interior, que imensa nostalgia
invadiu-me ! E conquanto isso pareça estranho
descobri por mim mesmo um desprezo tamanho
que os meus olhos choraram sem saber porquê ...
É tarde... e é muito cedo... O dia se entrevê...
É uma difusa, extensa, e dúbia claridade,
como uma olheira roxa a envolver a cidade
que dorme... Ouvem-se ao longe, passos, raramente,
que ficam muito tempo no ouvido da gente
e se perdem distante... e mais longe... e mais longe...
(A noite é agora assim como um capuz de monge
sobre a face marmórea e pálida do dia
esbranquiçando o espaço... Há uma funda poesia
ao redor, no silêncio... E eu penso que nesta hora
tu dormes... E antevendo, além, o vir da aurora,
invejo o Sol que vai teus olhos despertar...
Como deves ser linda a dormir e a sonhar ! )
Calco os olhos... e sinto as pálpebras pesadas
mal vejo no papel as letras rabiscadas;
a mão que as vai traçando, vacila, falseia,
como um ébrio que andasse a pisar sobre a areia
E nem queiras saber por que te escrevo, eu mesmo
não saberei dizer... faço esta carta, a esmo,
e lendo-a, pensarás talvez que enlouqueci...
Pois seja! Fiquei louco de pensar em ti!
Louco, sim! E entretanto se te visse agora
eu não te abraçaria... eu mandar-te-ia embora
ou gritaria então quando surgisses: - "Pára!
olha os meus olhos! olha-os! fita-os bem, repara!
não te encostes em mim! os teus lábios não sujes!
porque há nos meus vestígios de ordinários ruges,
tenho-os vivos na boca! Ah, se as visses! Coitadas!
Nem me toques... As mãos, também tenho-as marcadas,
e ainda sinto ao redor do corpo, abraços frios,
de braços que lembrando amarras de navios
prendem-se a qualquer cais... jogam-se a qualquer porto!
Devo estar meio vivo, ou talvez meio morto!..."
Se chegasses aqui, por milagre ou encanto
havias de me ver (talvez cheia de espanto),
ajoelhar-me aos teus pés... e pedir-te somente
que pousasses a mão na minha face ardente...
Nada mais... nada mais ousaria pedir
eu que agora queria esquecer e dormir...
Pensa o que tu quiseres, pensa que estou louco,
mas não me queiras mal afinal por tão pouco...
Cheguei... Sentei-me aqui, alma abatida e farta,
e encontrando ao acaso, esquecida, uma carta, reli-a ...
A tua carta, aquela que eu releio
chorando, a te adorar, e a pensar que te odeio...
Perdoa se te escrevo, esta é uma carta morta,
bem sei que nada há mais entre nós dois, - que importa
pois, que eu te fale ainda?... É um desabafo triste
já que tudo levaste... e nada mais subsiste...
É tarde... o dia chega... a madrugada é alta.
Ah! Se pudesses ver como me fazes falta!
(Poema de JG de Araujo Jorge extraído
do livro " AMO ! " 1a edição 1938 )
No mesmo dia, um ano antes, nasceu papai.
Chishna também aniversaria hoje.
Mas este poema, que o Vanine me mostrou há uns vinte anos, parece mesmo é com o velho Sinval.
Saudade docê companheiro.
" Trecho do Noturno "
É tarde já . . . Cheguei cansado e exausto, trago
dentro da alma um complexo estranhamente vago,
uma angústia que eu mesmo não sei definir...
Acabei de dançar, de beber, de sorrir...
Tenho os olhos ardendo, e eu sei, porque ainda há pouco
olhando-me no espelho tinha o olhar de um louco
e a palidez de um doente... E pensei para mim
que essa vida da noite é exatamente assim:
vale pela ilusão de que estamos contentes,
ninguém sabe o que eu sinto... e quem sabe o que sentes?
A alegria que espuma, é a espuma da bebida
que dá ao sangue a impulsão de um excesso de vida;
os gestos de que a alma inflamada é capaz
sintonizam com os ritmos doidos do jazz,
vamos buscar a vida, o prazer, e enojados
saímos com a impressão de que fomos logrados!
Ora, o mundo afinal, não sendo mau nem bom
lembra mesmo uma casa alegre de bas-fond;
- na fachada a féerie dos letreiros piscando,
por dentro, uma algazarra falsa, transbordando
sobre almas enfastiadas de tédio e de amor!
Por trás destes letreiros cheios de esplendor,
rebrilhantes, na névoa das horas já mortas,
quantos vultos sem rumo entre as frestas das portas
quanta vida afinal desarvorada e ao léu!
Dentro de todo o ruído e de todo o escarcéu
sem se olhar para os lábios, - nos olhos, no fundo,
há um drama que envergonha as platéias do mundo!
..........
Perdoa-me se escrevo estas cousas, perdoa,
nem sei bem o que escrevo, estou traçando à toa
estas linhas que lês... e esta filosofia
barata, eu a pensei, já à luz baça do dia
que anda clareando o céu e desenhando as ruas...
Cheguei; sentei-me aqui... e uma das cartas tuas
encontrei sobre a mesa esquecida: reli-a ...
Que amargura interior, que imensa nostalgia
invadiu-me ! E conquanto isso pareça estranho
descobri por mim mesmo um desprezo tamanho
que os meus olhos choraram sem saber porquê ...
É tarde... e é muito cedo... O dia se entrevê...
É uma difusa, extensa, e dúbia claridade,
como uma olheira roxa a envolver a cidade
que dorme... Ouvem-se ao longe, passos, raramente,
que ficam muito tempo no ouvido da gente
e se perdem distante... e mais longe... e mais longe...
(A noite é agora assim como um capuz de monge
sobre a face marmórea e pálida do dia
esbranquiçando o espaço... Há uma funda poesia
ao redor, no silêncio... E eu penso que nesta hora
tu dormes... E antevendo, além, o vir da aurora,
invejo o Sol que vai teus olhos despertar...
Como deves ser linda a dormir e a sonhar ! )
Calco os olhos... e sinto as pálpebras pesadas
mal vejo no papel as letras rabiscadas;
a mão que as vai traçando, vacila, falseia,
como um ébrio que andasse a pisar sobre a areia
E nem queiras saber por que te escrevo, eu mesmo
não saberei dizer... faço esta carta, a esmo,
e lendo-a, pensarás talvez que enlouqueci...
Pois seja! Fiquei louco de pensar em ti!
Louco, sim! E entretanto se te visse agora
eu não te abraçaria... eu mandar-te-ia embora
ou gritaria então quando surgisses: - "Pára!
olha os meus olhos! olha-os! fita-os bem, repara!
não te encostes em mim! os teus lábios não sujes!
porque há nos meus vestígios de ordinários ruges,
tenho-os vivos na boca! Ah, se as visses! Coitadas!
Nem me toques... As mãos, também tenho-as marcadas,
e ainda sinto ao redor do corpo, abraços frios,
de braços que lembrando amarras de navios
prendem-se a qualquer cais... jogam-se a qualquer porto!
Devo estar meio vivo, ou talvez meio morto!..."
Se chegasses aqui, por milagre ou encanto
havias de me ver (talvez cheia de espanto),
ajoelhar-me aos teus pés... e pedir-te somente
que pousasses a mão na minha face ardente...
Nada mais... nada mais ousaria pedir
eu que agora queria esquecer e dormir...
Pensa o que tu quiseres, pensa que estou louco,
mas não me queiras mal afinal por tão pouco...
Cheguei... Sentei-me aqui, alma abatida e farta,
e encontrando ao acaso, esquecida, uma carta, reli-a ...
A tua carta, aquela que eu releio
chorando, a te adorar, e a pensar que te odeio...
Perdoa se te escrevo, esta é uma carta morta,
bem sei que nada há mais entre nós dois, - que importa
pois, que eu te fale ainda?... É um desabafo triste
já que tudo levaste... e nada mais subsiste...
É tarde... o dia chega... a madrugada é alta.
Ah! Se pudesses ver como me fazes falta!
(Poema de JG de Araujo Jorge extraído
do livro " AMO ! " 1a edição 1938 )
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