domingo, 13 de outubro de 2013

ATALHO (Adélia Prado)

ATALHO
(Adélia Prado)

Nós não somos capazes da verdade,
os antinaturais por natureza.
Sofremos e procuramos.
Daí os eremitérios, as siglas,
diversos estatutos e estandartes.
Acontece, de pura misericórdia, um descanso:
uma borboleta amarela pousa na nossa mão
e, para nosso susto, permanece sem medo;
olhamos o céu e dizemos do nosso terreiro:
é pra lá que se vai, depois de tudo.
De puro orgulho eu queria ser pobre,
de visceral preguiça, pedra.
Contudo explico, desentendendo, procuro incansavelmente
a ponta da meada de seda,
o fundo da agulha de prata
que borda a blusa de Deus
que está no trono sentado
com olhar compassivo e ardente coração.
Eu quero amor sem fim. Deus dá?
Eu quero comida quente. Deus dá?
Aprecio as dificuldades e respectivos auxílios,
me esperando lá fora a luz do dia,
quando eu sair da floresta aonde eu fui passear
com medo da boicininga e da cobra píton
e não fiz nada demais: só fiquei com o moço na grama,
nossos rostos muito próximos,
transida.
Se tirasse as cobras do conto ia ficar perfeito.
Não tiro e sem bem por quê.
De Deus assim não tenho medo e gosto
mas se ele disser:
“vem pro Carmelo estudar Tomás de Aquino, Luzia rebelde!,
eu fico trêmula e pretensiosa
de fazer cada uma mais maravilhante
de me tirar o tempo pra ser feliz.
Do meu jeito, não.
Pego o trilho no pasto e vou saudando:
“Bom dia, compadre, bom dia, comadre,
seus patinho tão bons?”
Meus peitos duros de leite,
as ancas duras, rapaz.
Benzinho-de-espinho me pega, carrapicho,
a tarde doura.
Caçar ninho de galinha é bom,
é bom chá de amor-deixado.
Eta-vida-margarida que eu resolvo por álgebra.
Me dá um meu sono e eu vou dormir virada pra parede.
Onde tem um descascado eu ponho os olhos,
tem um mosquitinho tonto,
um cheiro de telha

e Deus resplandecendo Sua glória.

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